Empresas recorrem a escritórios de advocacia em busca de medidas protetivas contra tarifaço de Trump
Por: Joice Bacelo
Fonte: Valor Econômico
A ameaça do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de aplicar tarifa
de 50% sobre os produtos brasileiros gerou uma corrida de empresas a
escritórios de advocacia. Se confirmada, dizem especialistas, haverá
judicialização. As companhias buscam medidas protetivas. Elas temem,
principalmente, quebras de contratos - inclusive com parceiros nacionais - e
endividamento.
Advogados ouvidos pelo Valor afirmam que estão sendo procurados por
exportadores - que serão imediatamente afetados, se a nova tarifa entrar em
vigor - e por empresas que temem medidas de retaliação do governo
brasileiro aos americanos, caso as negociações, por vias diplomáticas, não
tenham efeito.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse ontem que vai “cobrar imposto
das empresas americanas digitais” em resposta à ameaça de taxação. Não deu
detalhes, no entanto, de como nem quando pretende aplicar essa medida.
Reiterou, por outro lado, que o governo brasileiro tem disposição para negociar.
As consultas aos escritórios de advocacia chegam de vários setores: do agro e
siderurgia a farmacêuticas, tecnologia, serviços e alimentação, como redes de
fast food.
“O ambiente é de cautela, monitoramento intenso e preparação para disputas
jurídicas tanto em tribunais nacionais quanto em arbitragens internacionais ou
fóruns da OMC [Organização Mundial do Comércio]”, diz Tiago Conde, sócio
do Sacha Calmon-Misabel Derzi Consultores e Advogados.
Risco de endividamento
Um dos focos de preocupação - que pode se transformar em briga judicial -
envolve exportadores que têm contrato de antecipação de câmbio com os
bancos. Nesses casos, a instituição financeira adianta o pagamento para a
empresa brasileira que fechou negócio com um cliente dos Estados Unidos para
produzir e enviar, num prazo futuro, os produtos. Geralmente, a brasileira usa
o dinheiro como fluxo de caixa e, muitas vezes, para financiar a própria
produção. Depois, quando exporta e é paga pela companhia americana, ela quita
a dívida com o banco.
Há um temor, nesses casos, de que empresas americanas cancelem os pedidos
do Brasil se a tarifa de 50% for, de fato, aplicada pelos Estados Unidos. Se isso
acontecer, a companhia brasileira corre o risco de ficar com produto estocado
e não ter como pagar a dívida que fez com o banco.
O advogado Julio Garcia Morais, do escritório Lopes Muniz, diz ter cliente
do setor de siderurgia nessa situação. “Nesse tipo de contrato costuma constar
que se a exportação não for seguida, por qualquer motivo, o contrato de câmbio
é convertido em contrato de mútuo, um empréstimo normal, e a jurisprudência
hoje é pacífica de que se deve aplicar o que diz o contrato. Só que, em relação
ao tarifaço, a adequação seria de curtíssimo prazo. Não temos nenhuma posição
da Justiça brasileira sobre isso”, afirma.
Trump anunciou no dia 9 de julho a imposição da tarifa de 50% sobre as
exportações brasileiras, com validade a partir de 1º de agosto, ou seja, só 22 dias
depois.
Morais diz que a empresa não se livrará da dívida, mas vê brecha para discussão
sobre o prazo de pagamento. “Com base na imprevisibilidade. Há espaço
para isso no Judiciário. Discutir prazo de pagamento”, afirma. “O ideal é que a
empresa tente, primeiro, negociar com o banco e, se não conseguir, partiria para
essa segunda etapa.”
Lei da Reciprocidade
Há um volume enorme de consultas, dizem especialistas, de empresas que não
seriam imediatamente atingidas pelo tarifaço de Trump, mas se preocupam
com contramedidas que possam ser usadas pelo governo brasileiro. A Lei da
Reciprocidade foi aprovada pelo Congresso Nacional, em abril, e
regulamentada nesta semana por decreto do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva. Desde o anúncio do tarifaço, ele tem dito que contramedidas podem ser
adotadas pelo governo federal.
Há um temor, segundo advogados, por parte de empresas brasileiras que
importam mercadorias e componentes tecnológicos dos Estados Unidos para
usar em produções próprias. Eventual imposição de tarifa sobre produtos
americanos, eles dizem - além de escalar a crise com os EUA -, poderia
inviabilizar a produção e gerar descumprimento dos contratos de fornecimento
com parceiros nacionais. Esse seria um foco de judicialização nos tribunais
brasileiros.
“Temos clientes que têm contratos de fornecimento de longo prazo e estão
muito preocupados, sem saber o que fazer”, afirma Gustavo Taparelli, sócio
do Abe Advogados. "Estamos numa missão de 24 horas. A cada movimento
dos dois governos, recebemos inúmeras consultas.”
Nas reuniões com empresários brasileiros, o governo tem escutado que
qualquer contramedida será a “pior saída” para o Brasil diante do clima entre
os dois países. O pedido é por negociação diplomática. Alguns setores têm
solicitado que o governo tente, nesse primeiro momento, um adiamento de 90
dias.
Apesar de os Estados Unidos não se mostrarem abertos ao diálogo, o governo
brasileiro tem dito que concorda com o setor produtivo, vai insistir em
conversar com os Estados Unidos e tentar negociações paralelas com empresas
americanas.
Mesmo alas favoráveis à retaliação defendem que, se isso for feito, que não seja
aumentando tarifas sobre as exportações dos EUA, porque haveria impacto à
inflação. A resposta poderia vir, por exemplo, apontam, por medidas na área de
propriedade industrial (marcas, medicamentos, softwares) e intelectual
(filmes, músicas, livros).
Marcas e patentes
Luiz Edgard Montaury Pimenta, sócio do escritório Montaury Pimenta
Machado & Vieira de Mello, especialista em propriedade industrial, afirma que
há preocupação de clientes com as medidas que podem ser adotadas pelo
governo brasileiro. "Implica em várias frentes. Estamos falando de telefonia,
empresas farmacêuticas, de alimentação, e aqui entram, por exemplo, as cadeias
de fast food", diz.
Ele explica que o uso de uma tecnologia ou marca registrada está atrelado a um
contrato de licenciamento, que prevê pagamento de royalties à empresa
proprietária. Geralmente, elas recebem um porcentual do faturamento da
companhia que usa a marca ou o produto.
No caso de uma medida de suspensão, afirma Montaury, as empresas brasileiras
ficariam autorizadas a deixar de pagar esses royalties - ou seja, as americanas,
detentoras das patentes, deixariam de receber bilhões. Ele alerta, no entanto,
que esse tipo de medida geraria insegurança jurídica, distorções no mercado e
poderia afastar investimentos estrangeiros.
Gabriel Leonardos, sócio do escritório Kasznar Leonardos, também
especialista na área, chama atenção, além disso, que a Lei da Reciprocidade
prevê, no artigo 3º, que a suspensão de concessões ou outras obrigações do país
sobre direitos de propriedade intelectual só podem ser feitas com base na Lei
nº 12.270, de 2010. Essa norma, ele diz, remete ao mecanismo da OMC.
“O governo teria que fazer uma queixa à OMC e, se autorizado, poderia
suspender patentes, marcas registradas e outros direitos de propriedade
intelectual de empresas americanas como forma de pressionar os Estados
Unidos”, ele afirma.
Segundo Leonardos, portanto, o governo brasileiro não poderia fazer essas
suspensões numa canetada, por decisão do presidente Lula. Se isso acontecer,
ele diz, certamente haverá judicialização por parte das empresas.
Brasil já recorreu à OMC
O advogado lembra que esse sistema da OMC já foi usado pelo Brasil antes.
Em 2009, no segundo mandato de Lula, a organização autorizou o Brasil a
suspender direitos de propriedade industrial como forma de retaliação aos
Estados Unidos.
O caso envolveu uma disputa sobre subsídios concedidos pelos Estados Unidos
a produtores de algodão. O Brasil alegou que esses subsídios prejudicavam os
produtores brasileiros, tornando o mercado internacional do algodão
desequilibrado. A medida, no entanto, não foi aplicada pelo Brasil porque os
dois países chegaram a um acordo.